Prédica: Romanos 9.1-5; 10.1-4
Autor: Wilhelm Bösemann
Data Litúrgica: 10º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 10/08/1980
Proclamar Libertação – Volume: V
I – Texto e contexto
a) Que será do povo de Israel?
Que será do povo escolhido, predileto de Deus? Qual o seu lugar no plano salvífico de Deus depois da vinda de Cristo? Como pode acontecer que os outros povos, os gentios, aceitam a salvação em Cristo e os judeus a rejeitam? Nos caps. 9-11 da sua Carta aos Romanos o apóstolo Paulo compartilha a sua profunda preocupação com o destino dos seus compatriotas, fazendo os cristãos romanos participarem de sua tristeza e dor. O destino do povo de Israel não pode deixar os cristãos não-judeus indiferentes. Eles precisam refletir sobre o enigma da rejeição de Cristo pelos israelitas. Será que Deus não guarda a sua aliança estabelecida com os homens? Que confiança pode-se ter então na pregação de Paulo. Perguntas que precisam ser respondidas (Leia também as meditações de van der Grijp, Volkmann e Wehrmann, onde encontrará mais considerações sobre o todo de Rm 9-11).
Mas nós? Podemos esperar que para os ouvintes da nossa prédica a questão do destino dos judeus seja algo existencial? Dificilmente. Para Paulo o assunto era tão importante, a ponto de lhe dedicar três capítulos inteiros. Para nós, a perícope sugerida como texto da prédica no 10o Domingo após Trindade não; levanta em primeiro lugar a questão do destino de Israel. Ela nos leva, antes, a refletir sobre a situação, perante Deus, dos piedosos, dos membros engajados da Igreja, dos que vão aos cultos regularmente, dos que lêem a sua Bíblia, oram e procuram fazer a vontade de Deus no seu dia a dia. São eles iguais ao povo de Israel, este seu povo, pelo qual Paulo sente grande tristeza e incessante dor no coração e pelo qual ele ora?
b) A tristeza e a dor de Paulo: Israel – escolhido por Deus, mas separado de Cristo
O apóstolo sofre. O fato de o povo de Israel não ter reconhecido em Jesus o Messias, o Salvador prometido de Deus, o Cristo, lhe causa profunda dor. Parece incrível: o povo escolhido de Deus, predileto, do qual Deus diz meu filho, meu primogênito (Ex 4.22), a quem ele revelou a sua glória, com quem estabeleceu a sua aliança – este povo rejeita o Salvador. Este povo – que é, de maneira toda especial, propriedade de Deus, povo que recebeu de Deus a sua legislação, culto e promessas – se fecha diante do cumprimento da lei mosaica e das promessas proféticas: Jesus. , Eles, que têm os patriarcas (com os quais Deus faiara direta e pessoalmente!) e dos quais o Cristo é um descendente, não reconhecem a presença pessoal de Deus, um fato que o evangelista João expressa com as palavras: Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. (Jo 1,11)
Trata-se, porém, nesta rejeição de Israel, não somente de infidelidade humana, mas também de as promessas de Deus aparentemente terem perdido a sua validade (A. Nygren). Paulo se encontra, diante de um dilema insuportável: está anunciando aos gentios o evangelho, o amor irrestrito de Deus, a justiça pela fé, e ao mesmo tempo precisa dizer que este mesmo Deus não cumpre o que prometeu ao seu povo escolhido, Israel. Que crédito terá o seu evangelho? Não se evidencia aqui uma nítida contradição?
Paulo precisa encontrar uma explicação. Ele a dá em Rm 9-1 1 . A partir de 9.6, o apóstolo mostra que a rejeição de Israel não é incompatível nem com as promessas, nem com a justiça de Deus. Deus é soberano. Na escolha do seu caminho ele não precisa perguntar a ninguém. A maneira de chegar ao cumprimento da sua promessa e assunto de sua própria e exclusiva responsabilidade. Na interpretação de Paulo a primeira palavra-chave neste caminho escolhido por Deus é o endurecimento que veio sobre Israel, mas essa noção não é a verdade última com respeito ao plano de Deus; ela é uma necessidade provisória, ela pertence à estratégia da salvação, mas um dia a salvação se tornará extensiva a todo o Israel . (van der Grijp)
O fato de Paulo ser israelita segundo a carne é, para ele, outro motivo de sentir tristeza e dor. Ele se sente tão intimamente ligado ao seu povo, a ponto de usar um termo que, no mais, só emprega no relacionamento com outros cristãos: meus irmãos. O amor aos seus compatriotas é tão profundo que desejaria ser anátema (v. 3), condenado e rejeitado por Deus, se assim pudesse servir a eles. Com isso, Paulo se coloca ao lado de Moisés que Intercedera perante Deus em favor do seu povo: Agora, pois, perdoa-lhe o pecado; ou, se não, risca-me, peço-te, do livro que escreveste. (Ex 32.32)
Para que não haja dúvida acerca da sinceridade das suas palavras (alguém poderia dizer: ele está apenas fingindo tristeza e dor; na realidade, como missionário entre os gentios, não tem mais interesse no destino dos judeus), o apóstolo assegura aos seus leitores que está falando a verdade, tomando como testemunha o próprio Cristo. A comunhão com ele e a sua consciência determinada e governada pelo Espírito Santo fazem com que não possa mentir.
c) A súplica de Paulo: a salvação de Israel – que rejeita a justiça pela fé e quer a justiça pela lei
O apóstolo vê claramente: A ação salvífica de Deus em Cristo significa condenação para Israel, por causa da sua incredulidade. Paulo não consegue conformar-se com isto. A promessa de Deus, dada ao povo de Israel, não pode simplesmente cair por terra. Por isso, intercede pelo seu povo. Sabe que não é a sua oração que salvará os israelitas; é na fidelidade de Deus que ele confia. Orando por eles, Paulo não se coloca acima dos seus compatriotas, não os menospreza por causa da sua incredulidade. O que ele sente é o desejo sincero de ver o seu povo no caminho certo da salvação pela fé. Paulo testifica que, do ponto de vista humano, eles têm zelo por Deus. Levam Deus realmente a sério na sua vivência, são autênticos na sua fé, mas – não com entendimento. Zelo sem entendimento distancia ao homem de Deus, e exatamente isso está acontecendo com Israel. Eles estão se empenhando, porém num empenho que não levará ao alvo. Eles querem justificar-se a si próprios perante Deus em vez de aceitar a justiça oferecida por Deus em Cristo. Procurando estabelecer a sua própria justiça, querendo com zelo alcançar a aceitação por parte de Deus, Israel se fecha diante da graça de Deus. Trata-se não só de um engano lamentável e eventualmente desculpável, mas de culpa, de revolta Israel se opõe a Deus, insistindo na justiça pela lei, e está no caminho errado, pois: Cristo é o fim da lei. Aqui a palavra fim deve ser compreendida como alvo. Não é a lei em si (a humanidade precisará desta enquanto o mundo existir), mas a lei mosaica, que tinha o seu lugar na vida do povo de Deus desde Moisés até Cristo. Neste último, em Cristo, Deus escolheu um outro caminho para levar o homem à salvação. Na cruz de Cristo a lei de Moisés chegou ao seu alvo. Agora vale uma nova justiça, uma nova base, um novo caminho: a justiça da fé em Cristo. Esta nova justiça coloca o homem numa nova relação com Deus e com o seu semelhante, determinada pela graça de Deus. Insistir na justiça pela lei significa afirmar que Cristo veio e morreu em vão.
II – O israelita em nós
Para que a boa nova da nossa perícope, Cristo – o fim da lei, possa ser ouvida, precisamos antes refletir sobre o israelita em nós, cristãos, membros da Igreja. Como estamos vendo a 'nossa* situação perante Deus? Até que ponto o apóstolo Paulo, compartilhando com os cristãos na cidade de Roma a sua dor e a sua súplica pelo destino do povo de Israel, não está colocando um espelho diante de nós, ajudando-nos a descobrir em nós a tendência de sempre de novo querermos apresentar a nossa ficha limpa? Será que há necessidade disso?
Igreja é corpo de Cristo, é povo de Deus. Somos raça eleita e nação santa (1 Pe 2.9). No nosso batismo Deus declarou o seu sim sobre nós. Pertencemos à família dele, somos seus filhos. Sabemos que Deus estabeleceu uma nova aliança conosco em Cristo, aliança esta que se baseia na graça, no seu perdão. Foi dito e testemunhado a nós que em Cristo há vida em abundância (Jo 10.10). Temos a promessa quem crer e for batizado, será salvo, e eis que estou convosco todos os dias, até a consumação do século. Sim, os atributos religiosos do povo de Israel são igualmente os atributos da Igreja. Mas pode acontecer também a nós que todos esses privilégios religiosos não nos guardem da condenação por parte de Deus (K. Barth). Pode acontecer que também sobre nós o apóstolo Paulo tenha que declarar: escolhidos por Deus, mas ao mesmo tempo separados dele, porque separados de Cristo. Esta separação começa a manifestar-se onde o cristão apresenta a sua ficha limpa, enumerando perante Deus as suas virtudes, boas ações, o seu empenho, as suas ideias positivas, para dizer: veja, Deus, eu realmente mereço a tua aceitação, o teu reconhecimento, a tua recompensa. O mundo chamado cristão está repleto destas tentativas de querer apresentar méritos. Ser cristão, para muitos não significa nada mais do que o cumprimento de determinadas regras e leis morais e religiosos.
Paulo atesta aos judeus que eles têm zelo por Deus. Na* lhes imputa preguiça ou negligência na oração, no estudo das Escrituras, na participação do culto, na conduta moral, em suma, no cumprimento da lei de Deus. Todo empenho de Israel, pelo menos dos judeus piedosos (dos que estão no culto), tem como centro e alvo o Deus vivo! Será que a nosso respeito pode se afirmar o mesmo? – Mas apesar de todo este zelo Israel está no caminho errado. Será que também a nós falta o conhecimento? Será que também nós temos esta dificuldade de nos deixarmos presentear por Deus? – Muitas vezes nos queixamos da falta de vivência autêntica nas nossas comunidades. Constatamos e lamentamos que há tanto tradicionalismo puro e simples entre nós. Não poderia ser que tudo isso são consequências da falta de conhecimento? Atividades, trabalho, empenho e esforço não faltam. Apelos à consciência e à boa vontade ouvimos (e lançamos) a toda hora. Paz e mais justiça para o mundo todos nós queremos. A pergunta é a seguinte: por que fazemos tudo isso, qual a nossa motivação? Mais: em todo o nosso ativismo, em todo o nosso empenho de edificar o reino de Deus na terra, não nos falta o conhecimento de que a obra é Deus e de que nós somos servos?
O princípio da justiça pela lei, esta tendência de querer apresentar algo, deve e pode morrer, pois Cristo é o fim da lei. Para o seu discípulo não precisa haver mais a necessidade de justificar-se, de mostrar a sua ficha limpa. Cristo o faz em seu lugar. É este o evangelho que a Igreja deve pregar aos seus membros piedosos e aos que vivem afastados, e talvez em primeiro lugar, aos pregadores: o verdadeiro alvo da nossa vida já foi alcançado. Para que possa haver vida plena Deus já fez tudo, enviando ao seu povo o Salvador.
Seguir a Cristo, orientar-se por ele na luta do dia a dia e não precisar apresentar ficha limpa a ninguém – esta é a vida que 'nos é oferecida por Deus. A prédica a partir da nossa perícope deve transmitir esta mensagem.
III – Bibliografia
– ALTHAUS, P. Der Brief an die Römer. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol.6. Göttingen, 1959.
– VAN DER GRIJP, K. Meditação sobre Romanos 11.25-32. In: Proclamar Libertação. Vol. l. São Leopoldo, 1976.
– NYGREN, A. Der Römerbrief. Göttingen, 1959.
– SCHLATTER, A. Gottes Gerechtigkeit. Stuttgart, 1959.
– VOLKMANN, M. Meditação sobre Romanos 9.30b-33. In: Proclamar Libertação. Vol.3. São Leopoldo. 1978.
– WEHRMANN, G. Meditação sobre Romanos 11.32-36. In: Proclamar Libertação. Vol. 5. São Leopoldo, 1979.