Lutero e a Sagrada Escritura
Na época de Lutero, a Sagrada Escritura era considerada um livro obscuro e perigoso. Somente especialistas conhecedores do latim deveriam ter acesso a ela, com o que se garantia o controle da interpretação. Consequentemente não havia real interesse na tradução. Lutero pensava de maneira diferente. Seu projeto de tradução decorria da convicção de que a Bíblia é e deve ser um livro popular. Todas as pessoas teriam o direito ao acesso direto à fonte que alimenta a fé. A tradução que empreendeu significou um ato de libertação. Pois a partir de então o povo podia dispensar a intermediação do clero para opinar em assuntos religiosos. Podia informar-se diretamente na Bíblia e instruir-se. Ocorria assim verdadeira emancipação da tutela eclesiástica.
Ao mesmo tempo, a tradução da Bíblia impunha novos deveres. Já não era possível responsabilizar tão somente o clero pelos assuntos da fé. Agora todos teriam alguma corresponsabilidade. Se posso ler a Bíblia cabe a mim mesmo julgar o certo e o errado; perceber o que importa fazer para herdar a vida eterna (Mx 10.17); distinguir entre Deus e os ídolos. A tradução da Bíblia quer substituir a comunidade obediente às instruções dos superiores pela comunidade participativa em que os membros dialogam e cooperam.
A tradução de Lutero espalhou-se com enorme rapidez pela Europa. Também em termos científicos representou uma novidade. Pois Lutero traduziu diretamente das línguas originais, que sã o grego e o hebraico. Desconsiderou assim a versão latina da Bíblia, chamada Vulgata, considerada o texto oficial na época. Explicam-se dessa maneira algumas diferenças entre a Bíblia católica e a evangélica. A numeração de alguns salmos, por exemplo, é outra. Sobretudo, porém, estão incluídos na Vulgata os assim chamados apócrifos. São sete livros, que a Bíblia católica tem a mais. Também esses foram traduzidos por Lutero. Ele os anexou ao Antigo Testamento com a observação de serem livros não equivalentes aos da Sagrada Escritura, mas úteis de serem lidos.
É claro que a tradução de Lutero não é livre de erros. Isso apesar de que, para os padrões da época, fosse da mais alta qualidade. O reformador costumava assessorar-se com seus amigos, a exemplo de Felipe Melanchthon, igualmente excelente linguista. Todas as traduções necessitam de revisões periódicas a FM de corrigir eventuais erros e de adaptar a linguagem. Assim aconteceu também com a tradução de Lutero. Sofreu inúmeras revisões no decorrer dos tempos. Hoje, a tradução de Lutero já não detém nenhum monopólio, embora continue sendo uma das mais importantes na esfera do idioma germânico. Também existem boas traduções católicas, inclusive para o português. Lutero foi um pioneiro.
A popularização da Bíblia teve mais outro efeito relevante: inaugurou uma revolução na área da educação. Todas as pessoas deveria ser capazes de ler e compreender a Bíblia. Lutero insistiu junto às autoridades governamentais na criação de escolas e no aprimoramento do ensino. Queria uma reforma também nesse setor. Logo, o cuidado com a educação passou a ser um compromisso luterano. Vale ressaltar tratar-se não tanto da educação e formação de uma elite, e sim do povo. Os reflexos podem ser observados ainda nos imigrantes alemães em nosso país que, na ausência do poder público, assumiram a causa da educação, implantando uma rede de escolas primárias e secundárias. Lutero promoveu a educação do povo, habilitando-o a fugir da miséria e a aprender o exercício da cidadania, pressuposto indispensável da democracia.
P. Dr. Gottfried Brakemeier
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